A FOME

A FOME

SOCIEDADE E SAÚDE

  Tupam Editores

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Apesar de redução em 2010, mil milhões de seres humanos passam fome em todo o mundo!

Imagens de crianças esqueléticas de ventres dilatados e com dificuldade para andar irromperam pelos ecrãs de televisão, há quase trinta anos, quando a seca e a guerra provocaram a fome a oito milhões de pessoas na Etiópia, das quais mais de um milhão morreu por inanição. Aquelas imagens foram notícia de primeira página, percorreram o mundo e deram origem a inúmeras iniciativas de ajuda humanitária, que culminaram com o concerto LIVE AID, cuja transmissão teve um nível de audiência jamais visto.

Mas há aqueles cujo sofrimento é silenciado e não origina o mesmo impacto, pois, embora sofram de fome crónica, não estão a ponto de morrer por inanição. Pertencem ao grupo dos subnutridos que, diariamente, deambulam pelas lixeiras das grandes urbes, nas favelas e até em alguns meios rurais, à procura de algo para levar à boca, enganar o estômago e evitar dormir de barriga vazia.

No último meio século a produção mundial de alimentos aumentou a um ritmo sem precedentes, superior à taxa de crescimento da população mundial, sendo inexplicável a razão pela qual cerca de mil milhões de pessoas em todo o mundo passam fome. Isto apesar de 2010 representar um marco, pois pela primeira vez nos últimos 15 anos se verificou um decréscimo do flagelo da fome a nível mundial.

Segundo dados da Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), um total de 925 milhões de pessoas sofre, actualmente, de desnutrição, o que corresponde a cerca de 9,6 por cento menos do que no ano passado, altura em que havia 1 023 milhões de famintos no mundo.

Apesar deste decréscimo, o número de pessoas com fome continua "inaceitavelmente elevado", alerta Jacques Diouf, director-geral daquela organização das Nações Unidas, pondo em causa os objectivos do milénio fixados pelos líderes mundiais em meados da década passada.

Uma das metas seria reduzir, até 2015, o número de vítimas da fome em cerca de metade, o que na altura equivaleria a 400 milhões de pessoas, valores considerados elevados, mas que limitaria o número de desnutridos a cerca de dez por cento da população. O número de famintos, porém, corresponde ainda a 16 por cento da população mundial, o que significa que a percentagem terá de ser reduzida em seis pontos nos próximos cinco anos, ao invés dos quatro pontos previstos inicialmente, quando se definiram as Metas de Desenvolvimento para o Milénio.

Para inverter a curva da tendência da fome, o ideal seria que a queda de 98 milhões, verificada neste último ano, se repetisse sucessivamente até 2015.

Estes dados foram divulgados pela FAO no último trimestre de 2010, em Roma, durante a comemoração do Dia Mundial da Alimentação. A desnutrição atinge uma em cada seis pessoas, sendo mais mortal que a malária, a sida e a tuberculose no seu conjunto. O impacto maior ocorre na Ásia e no Pacífico com 642 milhões de pessoas a passar fome, concentrando-se 265 milhões no continente africano, 42 milhões na América Latina e Caribe e 15 milhões nos países desenvolvidos.

O mesmo relatório também indica que a maior percentagem de subnutridos, em números relativos, continua a verificar-se na África subsariana, com 30 por cento em 2010 e onde uma de cada três pessoas sofre de fome crónica.

Em contrapartida, os maiores avanços vieram de países como a Nigéria, Mali, Gana, Arménia, Guiana, Myanmar, Vietname e Jamaica, seguidos de muito perto por um segundo grupo de países como a Etiópia, o Brasil e a China. Estes países têm condições para concretizar o primeiro Objectivo de Desenvolvimento do Milénio, enquanto, por outro lado, se verificam situações alarmantes como a do Congo, com 69 por cento da sua população desnutrida.

Segundo o director da FAO, a redução de 98 milhões de famintos ocorreu na sequência da descida no preço dos alimentos verificada no ano anterior, após a crise alimentar de 2007 e 2008, que fez disparar o número dos que não tinham um mínimo de uma refeição diária decente. A melhoria das condições económicas em algumas regiões menos desenvolvidas terá contribuído para o aumento da produção agrícola, que forçou a descida dos cereais. No entanto, perante o actual cenário de previsível agravamento em 40 por cento do preço dos alimentos na próxima década, propiciado pela crise financeira mundial, os números poderão novamente ensombrar os resultados positivos alcançados até agora.

Mesmo na região subsariana de África houve um recuo da fome com menos 12 milhões de famintos, mas os progressos fizeram-se sentir, em particular, no continente asiático, onde 80 milhões de pessoas deixaram de fazer parte das estatísticas. No entanto, dois terços da população malnutrida continuam concentrados em sete países, Bangladesh, China, Congo, Etiópia, Índia e Paquistão. Os grupos mais vulneráveis são as mulheres e, sobretudo, as crianças. Seis milhões das que têm menos de cinco anos, morrem, todos os anos, devido à fome e suas consequências.

Fome mata uma criança em cada seis segundos

A desnutrição faz o seu maior número de vítimas entre lactentes e crianças em idade pré-escolar, deixando sequelas permanentes nas que sobrevivem. São exemplo os 50 milhões de cegos que vagueiam pelo continente africano, asiático e americano em consequência de uma alimentação deficiente em vitamina A, que provoca a denominada xeroftalmia (olho seco) e a cegueira nocturna.

Paradoxalmente, a desnutrição pode ser desencadeada por excessos ou carências alimentares. Em ambos os casos ocorre um desequilíbrio entre as necessidades do organismo e a ingestão de nutrientes essenciais. Uma pessoa pode ser desnutrida e comer bem e até em quantidades superiores ao necessário, tornando-se obesa. É o caso da hipernutrição que também pode ser provocada pelo consumo exagerado de vitaminas e outros suplementos.

Pelo contrário, o subnutrido não consome as doses de alimento adequadas para que o organismo funcione de forma eficiente. Os resultados imediatos são a prostração, a apatia e até perdas de consciência, ocorrendo mais tarde a redução de tecido adiposo, pois as proteínas dos músculos e do fígado passam a ser a fonte final de energia, uma vez que a reserva de glicose há muito que se esgotou.

A subnutrição surge como consequência de uma ingestão insuficiente de nutrientes ou uma má absorção por parte do intestino. Pode ainda ocorrer excessiva perda de nutrientes devido a causas patológicas que provoquem hemorragias, diarreia ou insuficiência renal.

Durante certas fases da vida, como a infância, adolescência, gravidez e amamentação, o corpo necessita de mais nutrientes. O risco de nutrição deficiente é também maior no idoso, pois, embora as suas necessidades calóricas e proteicas sejam menores, ocorre uma má absorção dos nutrientes.

Desde uma nutrição adequada até ao estremo oposto da inanição, podem manifestar-se vários estádios, como, por exemplo, a desnutrição protéico-calórica, a principal causa de mortalidade infantil nos países em desenvolvimento. Este tipo de desnutrição pode surgir através de três formas: a seca, quando o indivíduo está magro e desidratado; a húmida, que ocorre quando há uma dilatação devido à retenção de líquidos, e o estado intermédio.

O primeiro tipo, mais conhecido por marasmo, ocorre quando se verifica inanição completa. Corresponde à situação mais grave de fome. É frequente em crianças que ingerem pouco alimento pela impossibilidade de aleitamento materno. O marasmo está associado a uma maior incidência de infecções, que, quando se propagam ao resto do organismo, podem pôr em risco a vida da criança.

O tipo húmido corresponde ao denominado kwashiorkor, um termo africano que significa "primeira criança-segunda criança". Trata-se de uma doença que surge após o nascimento da segunda criança, deixando a primeira de ser amamentada. A criança desmamada é alimentada com sopas de aveia de baixa qualidade, o que compromete o seu desenvolvimento, para além de produzir edemas, doenças de pele e mudanças na cor do cabelo.

Tanto no marasmo como na inanição, o organismo destrói os próprios tecidos para utilizar as suas calorias, levando ao atrofiamento dos órgãos, enfraquecimento do corpo e perda de quase metade do seu peso. Mais de 40 por cento das crianças que sofrem este tipo de desnutrição morrem ao fim de oito a doze semanas.

A desnutrição pode ainda ser classificada em leve, moderada ou grave, dependendo do peso e do crescimento linear da criança.

Nos primeiros anos de vida, a desnutrição afecta o desenvolvimento das capacidades cognitivas e o sistema imunitário da criança, tornando o organismo mais vulnerável a doenças ou infecções, como a diarreia, pneumonia, sarampo, anemia ou malária.

A aprendizagem também fica comprometida, levando a que o insucesso e o abandono escolar sejam factores que, mais tarde, vão influenciar na procura de um emprego, que será, provavelmente de baixo salário, perpetuando assim o círculo vicioso da pobreza e da fome. A baixa escolaridade traduz-se em menor capital humano acumulado pelas pessoas desnutridas, com efeitos negativos na sua produtividade. Esta também poderia ser maior entre a população, caso a desnutrição não tivesse provocado a morte prematura de muitos dos seus elementos.

O impacto sócio-económico para os países que sofrem do flagelo da fome, muitos deles em via de desenvolvimento, é muito grande a curto e longo prazo. Os efeitos da fome passam de geração em geração. Uma mãe desnutrida gera filhos com baixo peso que, se sobrevierem, vão transmitir as suas deficiências nutricionais e suas consequências aos seus descendentes. Por isso, a chamada "janela de oportunidade", para evitar que os danos comprometam a saúde e o desenvolvimento físico e mental da criança, ronda os dois ou três anos.

Após esta idade, os efeitos negativos da desnutrição tornam-se, em grande parte, irreversíveis, mesmo que a criança passe a ter, posteriormente, uma alimentação adequada. Para contrariar esta situação, bastaria melhorar os cuidados de saúde e a dieta das mães, tanto na gravidez como na amamentação.

É mais fácil e menos dispendioso erradicar a fome do que tratar dos males associados a este flagelo. Para além do tratamento das patologias ocasionadas pela subnutrição, como as anemias e infecções respiratórias, há que contabilizar os gastos na educação dos que apresentam dificuldades de aprendizagem. Mas é sobretudo a longo prazo que os efeitos da fome mais se fazem sentir, minando a capacidade de produção de todo um país e seu futuro desenvolvimento sócio-económico.

Segurança alimentar vs desnutrição

O direito à alimentação é reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos e Culturais de 1966. No entanto, todos os dias, milhões de pessoas consomem apenas o mínimo necessário para sobreviver e todas as noites adormecem sem saber se no dia seguinte haverá alimento suficiente. Esta incerteza é designada por insegurança alimentar.

De acordo com as projecções da FAO, com o potencial agrícola actual poder-se-ia alimentar, sem problemas, o dobro da população, contrariando as teorias malthusianas preconizadas desde o século XVIII, que partiam da premissa de que a fome era um mecanismo de regulação da natalidade, seguindo um processo de selecção natural.

Estas teorias, renovadas em plena crise petrolífera dos anos setenta, incidem no conceito de segurança alimentar. Esta estaria dependente, de acordo com as ideias de Thomas Malthus, da disponibilidade e produção de alimentos, que cresce linearmente, em oposição ao ritmo exponencial de crescimento da população.

Os especialistas, porém, afirmam que, se existe fome no mundo, não é pela falta de alimentos ou excesso populacional, mas sim pela má distribuição dos recursos, sendo os governos, por vezes, responsáveis pela pouca vontade política em combater a fome, através de medidas de equidade que garantam o acesso físico e económico a alimentos nutritivos por parte das populações.

Outros factores que poderão contribuir para a insegurança alimentar, particularmente, nos países africanos, são as más colheitas, na sequência de pragas ou períodos de seca, os conflitos armados, a especulação das matérias-primas, a pobreza e as epidemias como a sida.

Mas não é o aumento da população o obstáculo para erradicar a fome e a pobreza. O ritmo populacional tende a estabilizar, nos próximos anos, até 2050, altura em que o número de filhos, mesmo em agregados mais pobres, será de 2,2 por mulher.

E apesar de se prever no futuro a escassez de alguns recursos, actualmente abundantes, como os hídricos, a área cultivável ainda está bastante subutilizada. Segundo dados da ONU, mais de 16 milhões de km2 estão disponíveis, sendo, na sua maioria, áreas espalhadas pelo continente africano e latino-americano, precisamente onde ocorre maior desigualdade sócio-económica entre a opulência e os que nada têm. Também nestas regiões é habitual haver desperdício de alimentos, tal como ocorre nos países desenvolvidos.

A batalha contra a fome deve começar pela erradicação da pobreza, de forma a garantir um melhor acesso aos recursos por parte de uma população que olha avidamente para os países industrializados do norte. Do lado de lá dessa fronteira, a alimentação é um direito na mesa de quase todos os cidadãos, onde, paradoxalmente, não se morre de subnutrição, mas milhares morrem de doenças cardiovasculares associadas ao excesso de peso.

Realidade difícil de perceber para os cerca de dois terços da humanidade que lidam, diariamente, com aquilo que alguém denominou de "a pior arma de destruição massiva da actualidade".

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