A infância está repleta de enormes desafios, não só para as crianças mas igualmente para os seus pais. De entre todos, como fazendo parte do crescimento e de ser criança, há comportamentos considerados desejáveis para os pais e outros nem por isso. Um dos comportamentos indesejáveis mais difíceis com que os pais frequentemente têm de lidar é a mentira!
Mas não ouvimos constantemente referir que “a verdade está na boca das crianças”? Será que as crianças mentem realmente? Afinal, qual é a fronteira entre a mentira e a imaginação?
Na verdade, entre a mentira e a imaginação existe uma separação por faixa etária. As crianças usam constantemente histórias quando estão a brincar, a contar algo, ou até a explicar o que muitas vezes para elas é difícil de fazer. Imaginar, fantasiar e contar faz parte do universo infantil. É um recurso muito bem estruturado para essa fase da sua vida. Os mais pequenitos não mentem, transformam e constroem uma realidade própria.
Até aos 4 anos de idade não se pode falar em mentira propriamente dita, pois a criança ainda não tem a noção clara do que é verdadeiro ou falso, do imaginário e do real. É por volta dos 4 anos – período coincidente com uma forte imaginação – que surgem as primeiras mentiras.
Nesta altura, as crianças apercebem-se de que os adultos não têm acesso completo ao que pensam e testam a aquisição de novos conhecimentos através da narração de histórias ou simplesmente procuram justificações para as suas ações em motivos fantasiados, repletos de imaginação, como por exemplo, justificando a desarrumação do quarto culpando o lobo mau ou a bruxa por ter espalhado os brinquedos.
Dos 4 aos 6 anos mentem com maior frequência; aos 4 ao ritmo de 2 horas e aos 6 com uma cadência de cerca de 90 minutos. O seu vocabulário é mais rico, compreendem melhor o comportamento dos outros, e a mentira torna-se mais complexa e sofisticada.
Para alguns autores, a mentira só assume a dimensão intencional depois dos 8 anos. Aos 8-9 anos a diferenciação entre realidade e fantasia (por exemplo, a existência do Pai Natal) já se encontra suficientemente estruturada. Nestas faixas etárias, as histórias elaboradas parecem credíveis, sendo relatadas de forma entusiástica.
Mas, afinal, porque mentem as crianças?
As crianças mentem por duas razões: porque para elas é “verdadeiro” ou por medo.
Os mais pequenos não sabem distinguir a fantasia da realidade, tudo é possível e tudo é verdadeiro. Os super-heróis que vêem na TV têm “mesmo” superpoderes, os animais falam, os barcos voam e as fadas têm capacidades mágicas. As brincadeiras e expressões, que para os pais podem não ser verdadeiras, para a criança são-no.
Contudo, a partir dos 6-7 anos as crianças já têm consciência de que imaginar e mentir são situações bem distintas. Nesta altura mentem principalmente por medo: medo de castigos – a célebre frase “não fui eu!” é muito comum para escapar ao castigo –, medo de falhar, medo de não corresponder às expectativas, medo de não saber, medo de dececionar alguém querido… mas também podem mentir para se livrar de uma tarefa, conquistar algo que desejam, proteger um irmão ou amigo, chamar a atenção e ganhar protagonismo, impressionar os outros, aparentar competência, ou para ultrapassar a baixa autoestima.
Os pais devem ter atenção redobrada porque as mentiras também podem ser uma forma de esconder angústias e frustrações, ou ainda reproduções do comportamento de adultos.
A mentira faz parte do crescimento, mas se a desonestidade vai ou não fazer parte do caráter da criança, é algo que depende largamente da forma como os pais reagem a esse comportamento, isto é, da forma como for educada. Depende, aliás, da relação dos pais com a verdade, pois uma das principais formas de aprendizagem é a modulação de comportamentos.
Se os pais afirmam que não se dizem mentiras, mas mentem ou, mais grave ainda, tornam as crianças cúmplices dessa mentira (mesmo nas chamadas “mentirinhas piedosas”) a instrução inicial dos pais perde o seu valor e significado. Um exemplo típico é o “não digas nada à mãe” ou “o pai nem pode sonhar”.
É papel dos pais deixar claro que as mentiras não podem ser usadas como recurso para se livrar de alguma situação e que mentir não é uma saída conveniente em certas ocasiões.
E não desespere com esta fase, porque a idade do Pinóquio chega a todos, ainda que a uns mais cedo que a outros.
Com lidar com a mentira infantil
Mentir requer da criança um trabalho cognitivo complexo que envolve manipulação da informação, controle da inibição, perceção social, e linguagem (mesmo que não verbal). Por essa razão, não se preocupe excessivamente quando os miúdos começarem a contar pequenas mentiras – esse comportamento é até sinal de um bom desenvolvimento cognitivo e de aprendizagem das regras dos jogos sociais.
No entanto, se o comportamento de mentir se tornar frequente, exagerado e prejudicar outras pessoas, os pais e educadores devem começar a inquietar-se e tomar medidas de correção adequadas.
A melhor forma de ultrapassar o problema é procurar as razões por detrás da mentira: haverá alguma razão que justifique esse comportamento?
O adulto deve procurar entender o motivo que levou a criança a mentir, para dessa forma poder intervir, não corrigindo a mentira, mas antes mostrando que existem outros caminhos possíveis para a resolução do problema, e que os pais estão dispostos a ajudá-la a encontrar outra solução.
Facilite a aproximação e mantenha a calma. Uma postura muito rígida vai dificultar a aproximação. É importante que a criança se sinta segura para contar a verdade. Se perceber que os pais estão nervosos, poderá sentir-se amedrontada e em perigo, tendo mais dificuldade em assumir o seu erro. Acima de tudo, esteja preparado para ouvir verdades nem sempre boas, ou diferentes daquelas que gostaria.
Evite punir a criança. Uma das principais motivações para a mentira é justamente evitar a punição. A criança que tem medo de ser punida não se sentirá encorajada a contar a verdade, se a verdade resultar em castigo. Evitando a punição os pais estão a abrir caminho para que as crianças se tornem mais honestas.
Se o seu filho se dirigir a si com a verdade, não demonstre raiva, pois ele irá aprender a fazê-lo mais vezes. Não deixe de expressar o seu descontentamento pelo delito, mas valorize a sua honestidade.
É importante explicar-lhe as consequências de não falar a verdade, para que entenda que ao dizer uma mentira pode quebrar a confiança que os outros nele depositam.
Uma boa forma de lidar com a sua mentira, de lhe ensinar valores morais e as consequências das mentiras é contar-lhe uma história, como por exemplo “O Pedro e o lobo” – o menino que mentia tanto que quando falou a verdade ninguém acreditou, consequência natural de todo o mentiroso –, e “Pinóquio”, a famosa história do menino de madeira que quando mentia o seu nariz crescia, tal como a mentira, que muitas vezes começa pequenina e cresce sem controle.
É uma oportunidade de aprender sobre a mentira de forma lúdica. As personagens e os seus comportamentos são modelos para a criança aprender como a mentira pode trazer prejuízos a outras pessoas e ao próprio mentiroso. Existem imensos livros na literatura mundial que podem ajudar os pais a conversar com os filhos sobre a mentira e a ensinar-lhes novos valores morais.
Evite confrontos que provocam a mentira. Faça uma abordagem não ameaçadora e fale abertamente sobre o assunto.
Se ao dirigir-se à criança usar uma forma acusatória, perguntando “Foste tu que partiste a jarra?” estará a criar condições propícias para que uma mentira seja gerada na sua mente, como forma de defesa instintiva.
A criança irá responder “Não”. E o adulto terá de lidar com dois problemas – a jarra partida e a mentira. Em vez disso, comece por perguntar “Aconteceu um acidente?” Deixa-me ajudar a limpar. O que aconteceu?”. Desta forma, não lhe dará hipótese de mentir fazendo uma pergunta para a qual já conhece a resposta.
Dê-lhe oportunidade para corrigir o erro cometido. A possibilidade de reparar um dano, é normalmente muito mais eficaz do que um castigo e certamente vai contribuir de maneira positiva para o seu amadurecimento emocional.
Tenha cuidado com os rótulos. Não chame a criança de “mentiroso” ou “aldrabão” e muito menos o critique à frente de colegas ou de outros adultos. O rótulo não é bom para a sua autoestima, podendo levá-la a mentir ainda mais. Ou seja, se o seu filho acreditar que é mentiroso, pode até sentir-se mais confortável em mentir sempre que lhe seja conveniente.
Ensine-lhe a honestidade. Os pais têm um papel muito importante na hora de demonstrar honestidade. São eles que têm a maior influência quando se trata de educar para a verdade e devem desde cedo ensinar às crianças a importância de se ser honesto. Mostre-lhe que todos erramos, mas que não é o erro que nos define – é a forma como o corrigimos.
Dê o exemplo, e tenha atenção às incongruências. As crianças apreendem o código moral que é desenvolvido com, e pela família. Os pais devem ter em mente que elas observam tudo o que os adultos fazem e, normalmente, agem de forma semelhante. Então, muita atenção!
Não convém dizer que é errado mentir e ao mesmo tempo fingir que não está disponível porque não quer atender uma chamada telefónica indesejada; ou então, dizer-lhe “Se a senhora te perguntar, dizes que ainda tens 8 anos para continuarmos a pagar o bilhete infantil”. Parece-lhe familiar? Acredito que sim.
Este tipo de situações fazem com que se perca alguma da legitimidade em fazer passar a premissa familiar da “honestidade acima de tudo”. Em vez disso passa-se a mensagem de que mentir até é aceitável, desde que para nosso proveito.
A verdade é que todas as crianças, desde a infância à adolescência, “esticam a verdade” pelas mais variadas razões. A idade do Pinóquio não é realmente fácil, mas com alguma serenidade e paciência é possível contornar a situação e ajudar no crescimento de seres melhores.
Entretanto, tenha cuidado, na tentativa de o educar e para ultrapassar essa fase mais rapidamente não diga ao seu filho que se mentir o nariz dele vai crescer como o do Pinóquio. Não caia, também, nas ratoeiras da mentira. Até porque ele, mais cedo ou mais tarde, vai descobrir, e depois até pode dizer, bem alto: “tu também dizes mentiras”!