ESCLEROSE MÚLTIPLA, QUANDO O SISTEMA IMUNITÁRIO SE ENGANA

ESCLEROSE MÚLTIPLA, QUANDO O SISTEMA IMUNITÁRIO SE ENGANA

DOENÇAS E TRATAMENTOS

  Tupam Editores

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Organizado pelo Centro Hospitalar de Lisboa e Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, decorreu no passado dia 19 de Fevereiro, no auditório desta faculdade, um workshop subordinado ao tema "EM: da definição do diagnóstico às novas terapêuticas".

Este segundo curso de formação sobre a doença foi dirigido a todos os internos de neurologia e contou com a presença de alguns especialistas na área, em particular de Peter Rieckmann professor de Neurologia da Universidade Erlenagen Bamberg, na Alemanha, que abordou a temática das novas terapias para a Esclerose Múltipla (EM). No entanto, outros temas estiveram em debate, nomeadamente, o papel da ressonância magnética na definição do diagnóstico, os critérios clínicos e laboratoriais da EM e as terapias actuais para controle da doença.

A EM, do grego "endurecimento", é uma doença degenerativa do sistema nervoso central (SNC) que afecta o cérebro, tronco do encéfalo e a espinal medula. É um transtorno inflamatório e desmielinizante. A mielina é uma substância lipídica que isola as fibras nervosas, actuando como a cobertura de um cabo eléctrico e permitindo que os nervos transmitam seus impulsos rapidamente. Na EM, a perda de mielina ocasiona uma interrupção na condução dos impulsos eléctricos entre o SNC e o resto do corpo, dando origem aos diversos sintomas que caracterizam a doença.

A EM envolve muitas áreas de endurecimento ou cicatrização (esclerose), que se traduz em perda de mielina (placas ou lesões) em vários focos do sistema nervoso. Dado que na EM estas cicatrizes aparecem em momentos específicos e em diferentes zonas do cérebro, a expressão esclerose múltipla significa, literalmente, episódios que se repetem várias vezes. Os doentes podem então manifestar períodos de saúde relativamente bons (remissões) que alternam com surtos da doença (exacerbações). Contudo, quando os axónios ou fibras nervosas sofrem danos irreversíveis em resultado do processo inflamatório, a doença pode evoluir para uma deficiência neurológica e, a longo prazo, para invalidez. Pelo contrário, se a bainha da mielina tiver capacidade para se auto-regenerar, a função nervosa pode restabelecer-se por completo.

Depois da epilepsia, é a doença crónica neurológica que mais atinge adultos jovens, sendo uma das causas mais frequentes de invalidez nos países ocidentais. Afecta sobretudo indivíduos dos 15 aos 40 anos, sendo a sua incidência mais elevada, em cerca de dois terços, nas mulheres. A patologia é muito rara na puberdade e após os 60 anos, embora nesta última faixa etária se manifeste na sua forma mais severa e atinja mais os homens.

Mais de 2,5 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de EM. Só na Europa são cerca de 450 mil pacientes, com particular incidência nos países nórdicos. Em Portugal os estudos epidemiológicos mais recentes apontam para cerca de 5 mil portadores da doença.

De causa desconhecida, foi descrita pela primeira vez pelo neurologista francês Jean Martin Charcot em 1868, tendo-a denominado por "Esclerose em placas" devido às áreas endurecidas que encontrou disseminadas pelo SNC dos doentes após a autópsia. No entanto, existem relatos anteriores da doença, o primeiro dos quais remonta ao século XIV, através da descrição realizada por uma freira holandesa que manifestava sintomas muito típicos da doença, como dores intermitentes, debilidade nas pernas e perda de visão. Outro doente famoso, Augustus D’Este neto ilegítimo do rei Jorge III de Inglaterra, deixou um diário minucioso no qual descreveu os 22 anos em que conviveu com a doença que o levou, aos 50 anos, a passar o resto dos seus dias numa cadeira de rodas.

Apesar de a sua etiologia ainda ser um mistério, a maior parte dos neurologistas acredita que se trata de um problema multifactorial, para o qual contribuem várias causas. Pode ser uma doença auto-imune em que o organismo desencadeia um ataque defensivo contra os seus próprios tecidos, nomeadamente, a mielina.

Por esta razão, não se exclui que os ataques do sistema imunológico estejam associados a um elemento ambiental de origem desconhecida, e que alguns investigadores pensam poder tratar-se de um vírus, bactéria ou toxina. Por isso, poderá haver uma certa predisposição genética em combinação com algum agente exterior, que condiciona uma resposta imunológica desencadeando o processo. O factor hereditário também pode estar presente, dado que cerca de cinco por cento dos pacientes têm um irmão com a mesma doença e quinze por cento tem algum parente. Tratando-se de irmãos gémeos idênticos a proporção ainda é maior, podendo as probabilidades de ambos sofrerem da doença atingir os cinquenta por cento.

Até ao momento, apenas se sabe que as pessoas de raça branca têm o dobro de probabilidades de desenvolver a EM e que os países de clima temperado são os mais atingidos. A doença raramente ocorre em pessoas que passaram os primeiros anos de vida próximo do equador, sendo a proporção de um para cada 10 mil nos nascidos naquela zona do globo. Estudos mostram que o indivíduo que emigra para zonas consideradas de risco antes dos 15 anos de vida adquire uma maior predisposição para contrair a doença dessa região. Pelo contrário, se a deslocação ocorre após os 15 anos, a pessoa mantém a susceptibilidade do seu país de origem, ficando aparentemente protegida, caso provenha de clima tropical.

Clima, dieta, toxinas, luz solar, geomagnetismo, factores genéticos e doenças infecciosas foram as causas propostas pelos investigadores para explicar as diferenças regionais no aparecimento da EM, confirmando que, por trás da doença, tanto se conjugam factores ambientais como genéticos.

Por enquanto a doença não tem cura, embora exista medicação eficaz para travar a sua evolução e a investigação sobre as suas causas seja um campo activo bastante vasto. Também não há um sintoma típico que ajude no diagnóstico inicial da doença, sendo até muito frequente que o primeiro episódio de EM passe despercebido ao doente, que nem o médico consulta. A doença segue um curso variado e imprevisível, pois a desmienilização pode aparecer em qualquer parte do cérebro ou da medula espinhal dependendo os sintomas da área afectada. Se a perda de mielina ocorre nas fibras nervosas, transmissoras dos impulsos aos músculos, podem ocorrer problemas de mobilidade (sintomas motores). Porém, pode igualmente comprometer as ligações que transmitem sensibilidade ao cérebro, dando origem a alterações sensitivas ou aos chamados sintomas sensoriais.

Sintomas iniciais podem dificultar diagnóstico

A EM manifesta-se, em muitos casos, através de sintomas isolados, seguindo-se meses e anos sem que o doente apresente qualquer novo sinal da doença. Há doentes cujos sintomas se acentuam e generalizam decorridas várias semanas ou meses, podendo agravar-se ocasionalmente devido ao excesso de calor ou na sequência de uma infecção gripal ou febre. Alguns doentes ficam rapidamente incapacitados, pois os intervalos entre os surtos tendem a diminuir. Quando a EM ocorre na meia-idade a sua progressão é intensiva e as suas sequelas são permanentes e até fatais.

O diagnóstico depende da experiência do neurologista que poderá recorrer a exames clínicos, como a ressonância magnética ou a avaliação do líquido cefalorraquidiano para confirmar os sintomas iniciais. Contudo, o diagnóstico é sempre difícil, pois a EM pode apresentar sintomas muito semelhantes a outras doenças que afectam o SNC, como a sífilis, SIDA, doença de Lyme ou alguns tumores e quistos cerebrais. Por outro lado, os sintomas são, por vezes, pouco específicos e ocorrem por breves períodos. Por isso, o neurologista deve, normalmente, esperar por um segundo surto da doença para ter a certeza do diagnóstico. Fala-se de surto da doença, também denominado recidiva ou ataque, quando os sintomas persistem por mais de 24 horas ou reaparecem e agravam os sintomas anteriores. É necessário estar atento, porque o período entre um surto e o seguinte pode ser muito imprevisível.

Geralmente, o primeiro sintoma surge associado a problemas de visão, pelo facto de existirem lesões e inflamação no nervo óptico que produzem visão turva e esfumada ou mesmo perda acentuada da capacidade de ver de um dos olhos. Caso se verifiquem lesões na área cerebral responsável pelo movimento dos olhos, pode surgir igualmente visão dupla ou movimentos incontroláveis dos olhos (nistagmo). Para isso, torna-se necessário realizar um teste denominado Potencial Evocado Visual (PEV), que determina o tempo que o cérebro necessita para receber e interpretar as mensagens provenientes da vista.

Entre outros sintomas característicos da doença, surge também a fadiga intensa que incluiu a fraqueza muscular, falta de forças, assim como diminuição da resistência física e intelectual. Embora a dor não seja dos sintomas mais frequentes, quando esta ocorre pode tornar-se muito inconveniente, abrangendo desde as nevralgias comuns até à sensação de queimadura ou formigueiro sentidas nos membros superiores e inferiores (parestesias).

Alterações cognitivas relacionadas com dificuldade de concentração, assim como a percepção e rapidez de execução de determinadas tarefas, são também sinais reveladores da doença. Há doentes que também se queixam de problemas de equilíbrio e de coordenação de movimentos, o que pode comprometer a estabilidade do corpo na locomoção.

A capacidade de andar normalmente pode ficar afectada devido à ocorrência de espasticidade que se caracteriza por hipertonia muscular que, quando acentuada, pode impedir a marcha. A pessoa passa a ter dificuldade em dobrar os joelhos, havendo mesmo tendência para arrastar os pés e tropeçar.

Os transtornos urinários, que produzem a incontinência e a retenção urinárias, são dos sintomas mais frequentes relatados pelas pessoas com EM; da mesma forma os doentes podem também apresentar problemas intestinais, como sejam obstipação ou incontinência fecal. Problemas sexuais também podem estar associados à doença e manifestam-se, no caso da mulher, através da falta de lubrificação vaginal. No homem, o distúrbio mais comum é a perda da capacidade de erecção.

A incerteza é uma das características principais do diagnóstico e prognóstico da doença, pois cada caso mostra uma evolução diferente. Podem ocorrer todos os sintomas ou podem manifestar-se apenas alguns, nas várias fases da doença. No caso da EM benigna por exemplo, após um dos ataques, a recuperação é completa. A doença não se agrava ao longo do tempo e os sintomas são menos severos. Cerca de vinte por cento dos pacientes sofre deste tipo de EM, o que lhes permite levar uma vida perfeitamente normal. Por outro lado, os sintomas podem aparecer e reaparecer naquilo a que se denomina a EM por surtos de exacerbação-remissão.

Esta é a forma mais frequente da doença em indivíduos na faixa etária até aos 40 anos. No período de remissão pode assistir-se a uma recuperação parcial ou total da doença. À medida que os surtos se tornam mais frequentes, o indivíduo pode entrar na fase posterior da doença conhecida por EM secundária-progressiva. O grau de incapacidade persiste ou pode agravar-se com os surtos, sendo que cerca de trinta por cento dos doentes podem atingir esta fase ao fim de dez anos.

A fase mais temível para os doentes, por ser a mais incapacitante e problemática quanto ao tratamento, é a EM primariamente progressiva, que alguns autores inclusive denominam de esclerose maligna. Ocorre quando a incapacidade se acentua continuamente sem surtos, remissão ou recuperação. É mais frequente em doentes que apresentaram os primeiros sinais da doença após os 40 anos, causando incapacidade total, e em casos raros, a morte.

Terapias e perspectivas futuras da doença

Actualmente, não existe cura conhecida para a EM. Há no entanto tratamentos eficazes que contrariam a evolução da doença e aliviam os sintomas associados, proporcionando mesmo, por essa via, a reabilitação de muitos doentes. Os surtos são tratados através da administração de corticosteróides ou esteróides que, devido às suas propriedades anti-inflamatórias, podem tornar as crises menos severas. Durante décadas estes fármacos constituíram a terapêutica de eleição para tratar as crises, apesar dos seus efeitos adversos na osteoporose, diabetes ou desenvolvimento de infecções.

Um dos tratamentos mais recentes e eficazes contra a frequência dos surtos, e que contribui para a regressão da doença, é o recurso aos imunomoduladores, com destaque particular para o interferão beta (1A/1B) sob a forma injectável. Com menos reacções adversas, a administração de acetato de glatirâmero tem mostrado também os seus efeitos benéficos, não apenas na redução da ocorrência dos ataques, como no número de lesões nervosas afectadas e na progressão da incapacidade física.

O fármaco que mais sucesso teve até ao momento na EM progressiva foi a mitoxantrona que, ao debilitar o sistema imunológico do paciente, reduz os sintomas da doença. Contudo, as potenciais lesões que pode provocar no coração obrigam a que a sua aplicação seja efectuada apenas temporariamente.

A administração de anticorpos monoclonais, como o natalizumab, foi a tentativa que melhores resultados produziu, ao minorar as recidivas em 68 por cento, e o avanço da doença em 54 por cento. No entanto, aquelas substâncias tiveram de ser retiradas do mercado por se suspeitar de que poderiam provocar uma doença rara, pior que a esclerose múltipla, denominada leucoencefalopatia multifocal progressiva.

No tratamento da EM tem-se assistido a muitos avanços, nas últimas duas décadas, que incidem, não apenas no controlo dos surtos, como também na evolução da doença. Uma das áreas mais promissoras é o recurso a imunossupressores. Muitas experiências já foram realizadas nesse sentido, embora com resultados ainda controversos.

O transplante de medula óssea é uma das alternativas em aberto, assim como a pesquisa em fármacos que possam melhorar o controlo dos impulsos nervosos ou a elaboração de uma substância sintética baseada na mielina. Também uma vacina, a ser aplicada na fase inicial da doença, já foi testada em animais, incidindo na resposta do organismo às células T, responsáveis pela destruição da mielina.

Apesar das terapias actuais controlarem a primeira fase da doença, na mira dos investigadores está a possibilidade de elaborarem o medicamento ideal para a regeneração das células produtoras de mielina e dos próprios neurónios afectados.

Por outro lado, também se procura determinar quais os genes que influenciam a doença, assim como a sua interacção com os factores ambientais, de forma a estabelecer-se uma terapêutica de prevenção e neuroprotecção contra a EM.

Enquanto espera pelos resultados de uma ciência que por vezes não avança ao ritmo das suas expectativas, o doente deve investir na sua reabilitação. Esta deverá abranger exercícios físicos moderados e uma alimentação equilibrada, para além de evitar comportamentos de risco, como fumar, consumir álcool, a exposição ao stress ou às oscilações de temperatura.

A melhor terapia é conseguir recuperar o controlo da sua vida, a sua auto-estima e valorização pessoal. Muitos conseguem, com a fisioterapia adequada, atingir bons resultados e não perder a funcionalidade anterior ao diagnóstico.

Os dados comprovam que, três em cada quatro doentes com EM, continuam activos e são auto-suficientes nas tarefas diárias, sendo que, a esperança de vida para a maioria destas pessoas não se afasta muito das que não sofrem da doença. É só uma questão de não se desistir ao primeiro obstáculo e continuar a incrementar a qualidade de vida, enquanto se espera que a dedicação dos investigadores resulte em cura ou, melhor ainda, numa forma de prevenir esta doença que ainda esconde muitos segredos!

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