EUTANÁSIA, QUEM É O DONO DA VIDA?

EUTANÁSIA, QUEM É O DONO DA VIDA?

SOCIEDADE E SAÚDE

  Tupam Editores

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Os vários debates sobre a interrupção voluntária do aborto, que culminaram com um sim no referendo do passado dia 11 de Fevereiro, levaram a sociedade portuguesa a tomar consciência de um outro problema, de idêntica natureza porque está ligado à vida, mas que se encontra no extremo oposto, a eutanásia.

A palavra eutanásia deriva do grego eu+thánatos que significa boa morte e consiste na cessação da vida de uma pessoa em agonia extrema de uma forma indolor. Foi alvitrada pela pimeira vez por Francis Bacon, no século XVII, no seu livro Tratado da vida e da Morte.

É um tema sensível e de difícil abordagem que desde os áureos tempos da Grécia Antiga tem dividido as opiniões de pensadores. Na Ágora de Atenas, filósofos como Platão, Sócrates e Epicuro defendiam que perante o sofrimento do doente o suicídio era justificável, tornando-se um acto de compaixão. Já para Pitágoras e Hipócrates esse acto estava fora de questão.

Também a realidade entre as várias cidades gregas era diametralmente oposta, se em Atenas a eutanásia poderia ser uma acto de compaixão, na cidade de Esparta praticava-se a eutanásia eugénica: os recém-nascidos eram inspeccionados pelos membros do senado e aqueles que não tinham o vigor necessário para se tornarem bons soldados ou apresentassem deficiências físicas eram sacrificados.

Porém, a drástica evolução da medicina que permitiu uma crescente diminuição do sofrimento humano, prolongando a sua vida, quer através de fármacos quer através de dispositivos, veio lançar novos desafios à reflexão ética. A humanidade questiona-se sobre as fronteiras das experiências clínicas, dos processos de fecundação, da manipulação genética, entre outros. A notícia da sequenciação da totalidade do genoma humano marcou o início de uma nova época, de uma nova forma de entender a biologia e quem somos.

Foi do cruzamento do conhecimentos dos "saberes específicos sobre as peculiaridades das diferentes formas de vida construídas com e sobre a natureza", desde a vida vegetal, animal e a vida humana e dos "dados da biologia científica, estrutural e molecular, da genética, enquanto genoma e fisioma e de outros dados científicos que definem a vida como natureza" que nasceu a bioética. Segundo o Prof. Doutor Luís Archer S. J., um dos pioneiros da investigação e do ensino da genética molecular em Portugal, "o conceito de bioética, tal como foi apresentado em 1970, tornou-se avassalador ao abranger não apenas as questões éticas relacionadas com o exercício clínico – a ética em cuidados de saúde – mas também com tudo o que interfere com o fenómeno vital".

Actualmente, são os estudiosos da bioética que se debruçam sobre a eutanásia, mas, mais cedo ou mais tarde, toda a população será chamada a expressar a sua opinião.

Esta controvérsia que envolve a eutanásia deriva dos diferentes valores culturais que regem as várias sociedades, tornando-se difícill encontrar uma definição para morte que abranja todos os indivíduos como tal.

De uma forma geral, a morte é a interrupção física e definitiva da vida. A forma como cada sociedade encara a morte depende da época, da cultura, da educação, da religião, e fundamentalmente das vivências pessoais de cada pessoa.

Se para uma determinada sociedade a morte é uma experiência penosa, para outra é uma libertação, um renascimento para uma nova vida.

Por exemplo, em algumas civilizações pré-celtas e celtas havia o hábito de matar os pais se estes estivessem muito doentes. Já na Índia, os doentes que sofriam de doenças incuráveis eram atirados ao rio Ganges com as narinas e a boca tapadas.

Do ponto de vista religioso, a igreja católica opõe-se veementemente à eutanásia – aceitando apenas o duplo efeito (a administração de uma grande quantidade de fármacos com o objectivo de minorar o sofrimento do paciente, mas cuja consequência poderá ser a sua morte) –, já as igrejas luterana e calvinista mostram-se a favor da eutanásia dentro de limites muito específicos.

Ao longo dos anos, vários pensadores, desde Francis Bacon, a Hume, passando por Schopenhauer e Kant, defenderam com igual fervor, ambos os lados da questão.

Independentemente dos argumentos pró ou contra, que cada grupo defenda, é necessário identificar os vários tipos de eutanásia: a eutanásia passiva e activa, a distanásia e a ortotanásia.

A eutanásia activa passa pelo planeamento, em conjunto com o doente, do terminus da sua vida. Já a eutanásia passiva não provoca deliberadamente a morte do paciente, pois apenas se interrompem todos os tipos de cuidados médicos, o que irá provocar, consequentemente, com o decorrer do tempo, a morte do doente.

Por seu lado, a ortotanásia consiste na defesa do reconhecimento do momento natural da morte do indivíduo, por isso, nada se deverá fazer para prolongar a sua vida.

A distanásia por sua vez, situa-se no extremo oposto desta definição e consiste na defesa de que tudo deverá ser feito para prolongar a vida do doente, mesmo que este seja vítima de uma doença incurável ou de um sofrimento agonizante.

É necessário, igualmente, diferenciar eutanásia – o acto é executado por uma segunda pessoa, – do suicídio assistido – o doente provoca a sua morte, ainda que recorra à ajuda terceiros que lhe facilitem os meios.

Eis os argumentos que cada um dos lados defende.

Os grupos pró-eutanásia, que começaram a surgir por volta de 1935, estão convictos de que a eutanásia é o melhor caminho a seguir para evitar a agonia excruciante dos doentes que se consideram enjaulados dentro de uma vida sem qualidade. Estes grupos não defendem a morte, defendem o direito à escolha, na qual o indivíduo "não perde o poder de ser actor e agente digno até ao fim". Esta escolha é uma opção consciente e informada. Não poderá ser, de modo algum, uma escolha precipitada.

Quando um indivíduo decide que já não mais quer viver, antes de lhe ser administrada a sua última vontade, são analisados todos os factores – biológicos, sociais, culturais, económicos e psiquiátricos – de modo a assegurar que esta escolha é feita em consciência e que não existe a mínima hipótese de arrependimento.

O filme Mar Adentro deu a conhecer ao mundo o sofrimento de Ramón Sampedro e a sua vontade inquebrantável de morrer. Ramón Sampedro tornou-se um símbolo da luta dos grupos pró-eutanásia, sendo célebre a sua frase, pronunciada num tribunal espanhol durante o pedido da antecipação da sua morte, "a vida é um direito e não uma obrigação".

Os grupos anti-eutanásia defendem, por outro lado, que a vida é um bem inalienável, sendo a prática da eutanásia uma usurpação desse mesmo bem.

Do ponto de vista deontológico, um médico nunca poderá matar ninguém, o juramento de Hipócrates assim o proíbe. O médico deverá fazer tudo ao seu alcance para minorar o sofrimento do seu paciente, pondo à sua disposição todos os meios para que este possa sobreviver até que o seu coração pare naturalmente.

Estes grupos defendem que existem muitos factores – que se tornaram mais visíveis a partir da década de 50 devido ao facto dos doentes terem passado a ser tratados quase integralmente em unidades hospitalares – que conduzem à depressão e ao desejo de morrer, tais como estarem quase em permanência acamados, a iluminação artificial, a audição de ruídos de fundo deprimentes e a ausência dos seus familiares, se bem que a maioria dos pacientes que decidem optar pela eutanásia, sejam aqueles que estão em estado terminal, há anos, nas suas próprias casas.

Apercebemo-nos que uma das áreas da medicina que mais cresceu nestes últimos anos foi a àrea dos cuidados paliativos. Este tipo de tratamentos não são apenas realizados por profissionais de saúde, mas também por assistentes sociais e psicólogos, entre outros. Em Portugal, existem sete unidades de cuidados paliativos, que no entanto não suprem as reais necessidades.

O âmago da questão para estes grupos é saber os porquês que levam os doentes a querer morrer – a dor física e psicológica, a solidão, o desespero – e ajudá-los a vencer os seus problemas e não ajudá-los a morrer.

Estes grupos chamam a atenção para estudos clínicos que sugerem a existência de uma associação entre suicídio, e tentativas de suicídio, mesmo nos pacientes que estão a morrer e perturbações do foro psiquiátrico. Nos poucos estudos realizados nos doentes a receber cuidados paliativos, o desejo de morrer tem vindo, igualmente, a ser associado com sintomas de depressão major, que lhe é inerente.

Entretanto, temos que considerar que alguém que "existe" há anos com dores excruciantes, transformado em "vegetal" e sem perspectiva de cura, tende naturalmente a ficar psicologicamente muito afectado.

Para além de todos os aspectos que aqui foram mencionados – éticos, morais, filosóficos –, a questão maior está relacionada com factores de ordem jurídica, que diferem de país para país.

A Holanda foi o primeiro país do mundo a aprovar a legalização da eutanásia, em 2000. Em 2002, a Bélgica tornou-se o segundo país a despenalizar a prática da eutanásia. Porém, já em 1934, o Uruguai havia regulamentado a possibilidade da prática de eutanásia, legislação essa que se mantém até hoje.

Em Portugal, não existe qualquer legislação que permita a prática da eutanásia ou do suicídio assistido. Desse modo, ambos os actos serão julgados como homicídio a "pedido instante" da vítima, cuja pena pode ir até aos 3 anos de prisão (Artigo 134º do Código Penal).

Apesar de ainda não se debater com muita frequência este tema, a consciência colectiva portuguesa está a despertar para as questões éticas, morais e jurídicas da eutanásia, que só esporadicamente são afloradas nos média.

A eutanásia, no seu verdadeiro sentido, é uma acto de compaixão. No entanto, a divergência de opiniões será uma constante neste tema e as mesmas perguntas ecoarão até ao fim dos tempos: Tal como no aborto, se todos temos direito à vida, então, não teremos todos, igualmente, o direito à morte? Ou se, por outro lado, apenas o tempo é o dono do pulsar do coração.

Autor:
Tupam Editores

Última revisão:
09 de Abril de 2024

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